sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A volta do Pássaro Encantado

Lindo Conto de Rubem Alves



Um dia ele voltou. Mas estava diferente. Triste .


– Você mudou – disse a Menina!
– Eu sei, ele respondeu. – Perdi a alegria. Não mais tenho vontade de voar!
– Como foi que isto aconteceu? – perguntou a Menina.
– Estou velho. Não sou como era…—ele respondeu.
– Quem lhe contou isto?
– O espelho…
Com estas palavras, o Pássaro tirou de dentro de suas penas um espelho de ouro e começou a contemplar o seu rosto.
– Não me lembro desse espelho – disse a Menina.
– Foi presente de alguém! Deixado à minha porta –explicou o Pássaro.
“Como seu Pássaro mudara!”, a Menina pensou. Ela nunca o havia visto se olhando num espelho. Seus olhos estavam sempre cheios de mundos, de montanhas e campos nevados, florestas e mares… Tão cheios de mundos, que não havia neles lugar para sua própria imagem. Mas agora era como se os mundos não mais existissem. Os olhos do Pássaro estavam cheios do seu próprio reflexo. A Menina percebeu que seu Pássaro fora enfeitiçado. Com certeza alguém com inveja, como a madrasta da Branca de Neve. E que instrumento mais terrível para o feitiço que um espelho? Mais terrível que as gaiolas. De dentro da gaiola todos querem sair, mas dentro dos espelhos todos querem ficar.
A Menina entristeceu… E jurou que tudo faria para quebrar qualquer feitiço.
Mas de feitiços ela nada entendia. Procurou então os conselhos de um velho mago, que lhe revelou os segredos de todos os bruxedos.
Uma pessoa fica enfeitiçada quando se torna incapaz de amar. E, para isso, não existe nada mais forte que um espelho. O espelho faz com que as pessoas só vejam a si mesmas. E quem vê somente o próprio reflexo não consegue amar. Adoece e morre. Narciso morreu assim, enfeitiçado por sua própria beleza, refletida na água da fonte. E foi a beleza da madrasta da Branca, refletida no espelho, que a transformou de mulher linda em bruxa horrenda! Contra o feitiço do espelho existe só um remédio: é preciso redescobrir o amor, ficar de novo apaixonado. Somente o amor tem poder suficiente para arrancar as pessoas de dentro da armadilha do espelho. Mas não há receitas… Somente quem ama a pessoa enfeitiçada pode salvá-la…
A Menina pensou que, talvez, as coisas que o Pássaro sempre amara, no passado, teriam o poder para fazê-lo amar agora, no presente. E se lembrou da alegria que ele tinha nas frutas do pomar. Trouxe-lhe então as mais queridas: caquis, pitangas, mangas, romãs, jabuticabas, mexericas, aquelas que guardavam as memórias de infância escondida em sua carne. Mas o Pássaro se recusou a comer. Não tinha fome de frutas. Sua boca estava adormecida, como se não existisse… Só tinha olhos, olhos que fitavam o espelho em busca da beleza perdida, ausente…
A Menina não se deu por vencida. Resolveu tentar a sedução dos perfumes. Os perfumes são sutis: penetram fundo, nas profundezas da alma. Lembrou-se de que o Pássaro amava o cheiro bom das plantas. Foi então ao jardim e ali colheu flores de jasmim, magnólia, madressilva, flor-do-imperador e as folhas de hortelã, manjericão, rosmaninho e alecrim… “Ah!”, ela pensava, “não existe bruxedo que resista aos perfumes, pois eles entram na alma, aonde nem mesmo os pensamentos e os olhares enfeitiçantes conseguem chegar…”
Mas o Pássaro também se tornara incapaz de sentir os perfumes. Ele era só olhos, em busca de uma imagem perdida…
– Minha tristeza mora num lugar mais fundo que o lugar dos perfumes, ele explicou à Menina.
– Tenho saudades de mim mesmo, daquilo que já fui. Procuro, no espelho, um rosto passado, um tempo perdido… E a tristeza é por isso, porque sei que não é possível reencontrar!
A Menina pensou, então, que a ciência poderia ajudar. Procurou médicos de perto e de longe e voltou para casa carregada de pílulas e injeções cheias de alegria. Mas os milagres eram curtos e a alegria se ia tão depressa quanto chegara.
– Minha doença não é do corpo – disse o Pássaro – Ela mora na alma. Se eu não vôo, não é porque minhas asas ficaram fracas. Elas ficaram fracas porque não desejo mais voar. E quando o desejo se vai, vai-se também a alegria… E então o corpo envelhece!
A Menina, chorando, lhe perguntou:
– Mas não existe remédio para a tristeza?
– Sei que existe – disse o Pássaro. – Mas num lugar muito longe (ou será muito perto?), que não sei onde é. Mas para chegar até lá, há de se saber voar. Você já voou? – o Pássaro perguntou à Menina.
– Voar, eu? Sou uma menina, não tenho asas…
– Mas você já tem asas – ele afirmou. – E nem sequer percebeu… É que as asas das meninas, diferente das asas dos pássaros e das borboletas, não são vistas com os olhos. São invisíveis… Só podem ser vistas com os olhos da imaginação!
[...]
Muito longe dali, o Pássaro se olhava no espelho e chorava os sinais do tempo gravados no seu rosto e a única coisa que via era sua própria imagem. De repente, entretanto, algo passou bem no fundo da sua alma, Como se fosse um Vento leve, bem leve; ou um raio de sol crepuscular; uma pequena chama de fogueira no frio das montanhas; um sonho bonito, em meio à noite… E ele se lembrou da Menina. Onde estaria ela? Deixou sobre a mesa o espelho e saiu “em busca das marcas da sua Ausência”, no perfume das flores, no gosto dos frutos, no quarto vazio… Havia, por todos os lugares, a presença da sua Ausência. E naquele corpo, por tanto tempo morto dentro do espelho, o Desejo cresceu, o rosto sorriu, as asas se abriram e o que era pesado voou…
Ressuscitou…
E cada um deles partiu, ignorando o que o outro fazia, em busca do reencontro…
O feitiço fora quebrado.
Estavam apaixonados.
Voavam leves, ao Vento, com as asas da saudade…
E ambos traziam, no brilho dos olhos, os sinais da juventude eterna que os anos não conseguem apagar… Porque os que estão apaixonados, não envelhecem jamais…

ALVES, Rubem. A volta do Pássaro Encantando. São Paulo: Paulus, 1989. (Fragmento)

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